150 anos de A Gênese: importância e fidedignidade
Antonio Cesar Perri de
Carvalho
Entre as várias obras de autoria de Allan Kardec, com A Gênese completa-se o quinto volume das
chamadas Obras Básicas da Codificação. Kardec discorre sobre questões
importantes que destaca no subtítulo: os milagres e as predições segundo o
Espiritismo; e analisa a Gênese de acordo com as leis da Natureza e a
interpretação espírita.
A edição da Revista
Espírita de janeiro de 1868 anunciava que o livro A Gênese estaria à venda no dia 6 de janeiro de 1868. O exemplar
desta Revista, de fevereiro de 1868
trazia uma dissertação do espírito S. Luís sobre a nova obra. Surgem notícias
sobre novas edições: 2a edição (março de 1868); 3a
edição (abril de 1868); e ao longo daquele ano Kardec transcreveu vários
trechos dessa nova obra na Revista
Espírita. Até a desencarnação de Kardec (1869), existiam quatro edições dessa
Obra Básica.1,2
A propósito das edições subsequentes à partida de Kardec é
que surgem algumas dúvidas e polêmicas. Esta questão reapareceu durante
reunião da Comissão Executiva do Conselho Espírita Internacional, ocorrida em
Bogotá (Colômbia), em outubro de 2017, com divulgação de carta do presidente da
Confederação Espírita Argentina e consta a informação de que teria sido
motivação de um questionamento em um momento da reunião do Conselho Federativo
Nacional da FEB, em novembro de 2017.
A dúvida
reinante é sobre a fidedignidade da versão francesa que serviu de base para as
traduções de A Gênese. Já existiam
várias controvérsias, mas agora reaparecem principalmente a partir da recente edição
de A gênese, pela Confederación Espiritista Argentina, com
tradução realizada por Gustavo N. Martínez, a partir da 1a
edição francesa, lançada aos 6/01/1868.3
A
propósito, são foram louváveis as providências do presidente da
Confederação Espírita Argentina em levar a questão ao CEI, conforme trecho de
sua carta, onde registra que: “esclarecer a grave questão, o presidente da CEA
solicitou uma pesquisa à sra. Simoni Privato Goidanich, e que
foi realizada pessoalmente nos Arquivos Nacionais da França e na Biblioteca
Nacional da França, localizadas em Paris, assim como na própria C.E.A. e na
Associação Espírita Constancia, de Buenos Aires.”[*] O presidente da instituição
prossegue: “Esta pesquisa resultou no livro El Legado de Allan Kardec, editado
pela CEA [...] que demonstram que o conteúdo definitivo de La
genèse, les miracles et les prédictions selon le spiritisme é o do único
exemplar que foi depositado legalmente durante a existência física de Allan
Kardec na Biblioteca Nacional da França e que, portanto, o mestre jamais
modificou esse conteúdo, publicado em 1868.”4
O livro El legado de Allan Kardec, de autoria de
Simoni Privato Goidanich, foi lançado
na sede da C.E.A., em Buenos Aires, aos 3/10/2017.5
Henri Sausse, o principal biógrafo de
Kardec e dinâmico líder espírita francês, em artigos – um deles intitulado “Uma
infâmia” - publicados no jornal Le
Spiritisme, em 1884 e 1885, já levantava questões sobre as adulterações na
5a edição de A Gênese
e apontou 126 alterações no texto original.5
Entre muitos estudiosos há a suspeita de que alguns trechos de
A Gênese poderiam ter sido alterados provavelmente
por Pierre-Gaëtan
Leymarie (1827-1901). Este dirigente, com a desencarnação
de Kardec, passou a exercer as funções de redator-chefe e diretor da "Revue
Spirite" (1870 a 1901) e gerente da "Librairie Spirite" (1870
a 1897). Consta que, na prática, exerceria
muita influência na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, cuja presidência
era formalmente ocupada pelo Sr. Vautier; e passou a cuidar das edições e
autorizações de traduções de obras de Kardec.2 E Leymarie foi
presidente da “Sociedade para a Continuação das Obras Espíritas de Allan
Kardec”.6
Como ilustração histórica dessas autorizações há o caso
brasileiro das traduções pioneiras das obras de Kardec. No
princípio do ano de 1875, Pierre-Gaëtan Leymarie
autorizou em carta ao dr. Joaquim Carlos Travassos a tradução das obras de
Allan Kardec para o português. Essa missiva foi publicada na íntegra na Revista Espírita, edição de 1875. Joaquim Carlos Travassos
(1839-1915) traduziu para o português
quatro obras básicas da Codificação, com exceção de A Gênese, em 1875 e 1876, utilizando o pseudônimo de
"Fortúnio". As quatro obras foram publicadas pela Editora
B. L. Garnier, do Rio de Janeiro.6 Em biografia sobre o tradutor Travassos, Zêus Wantuil
comenta: “[...] a única coisa de interessante a anotar, sem nos referirmos ao
bom estilo do tradutor, é o judicioso esclarecimento, de fundo rustenista, que
vem na obra ‘O Céu e o Inferno’...”6
Leymarie
teve intensa atuação na França. A 1ª edição da revista Reformador, de janeiro de 1883, noticia que ele representou a
França em congresso ocorrido em Bruxelas, objetivando a criação de uma União
Espiritualista Universal.7 Há correspondências de Leymarie com a
então novel Federação Espírita Brasileira.
A
ação de Leymarie foi polêmica, inclusive foi envolvido no histórico “processo
dos espíritas”, relacionado com exploração das chamadas fotos de espíritos, em
que foi condenado. Muitos registros constam em livro histórico e esgotado de
Berthe Fropo - Beaucoup de Lumière -,
uma espírita atuante, fiel aos ideais de Allan Kardec, muito amiga de Amélie
Boudet, vizinha e apoiadora desta depois da desencarnação do codificador do
Espiritismo.2 No ano de 2017 o citado livro foi traduzido e disponibilizado
em edição digital bilíngue: a tradução em português e o original em francês - Beaucoup de Lumière (1884).
Berthe
Fropo aborda o ponto crucial do desvirtuamento doutrinário ocorrido no movimento
espírita francês pós-Kardec, comprometendo a continuação das obras do Codificador
da Doutrina. Nessa obra histórica fica evidenciado que “com o aval de Amélie
Boudet, Gabriel Delanne e Berthe Fropo se lançaram numa investida para reavivar
os planos de continuação das obras de Kardec, que nas mãos de Leymarie haviam
sido deturpados, por influência de ideologias outras, como o roustanguismo e —
ainda mais fortemente — a mística doutrina da Teosofia de Madame Blavatsky e do
Coronel Olcott.”2
Portanto,
há indícios para haver suspeitas sobre eventuais alterações promovidas por
Leymarie em itens de A Gênese.
Isso posto, citaremos apenas um item da citada obra em
apenas algumas traduções para o português.
A tradicional edição de A Gênese, traduzida por Guillon Ribeiro (FEB) a
partir da 5a edição francesa de 1872, não traz
nenhuma informação adicional.8 A edição do Instituto de Difusão
Espírita, traduzida por Salvador Gentile, utiliza a mesma edição francesa adotada
por Guillon Ribeiro.9
Na edição da FEB, traduzida pelo Evandro Noleto Bezerra, também a
partir da 5a edição francesa de 1872, o tradutor introduz
uma nota de rodapé no item 67 do capítulo XV, anotando que há uma diferença com
relação à edição de 1868, com Kardec ainda encarnado. Justifica que “ao revisar
a obra com vistas à 4a edição, Allan Kardec houve por bem
suprimir o item 67 que constava nas edições anteriores”. Nessa nota de rodapé,
de número 124, o tradutor Evandro transcreve o item suprimido em outras versões
“pelo seu inestimável valor histórico, o item 67 das três primeiras de edições
de A Gênese”.10
Na edição do Centro Espírita Léon Denis, a tradutora
Albertina Escudeiro Sêco, se baseia numa 4a edição francesa,
de 1868, e introduz o item 67 original, a saber:
“67.
A que se reduziu o corpo carnal? Este é um problema cuja solução não se pode
deduzir, até nova ordem, exceto por hipóteses, pela falta de elementos
suficientes para firmar uma convicção. Essa solução, aliás, é de uma
importância secundária e não acrescentaria nada aos méritos do Cristo, nem aos
fatos que atestam, de uma maneira bem peremptória, sua superioridade e sua
missão divina. Não pode, pois, haver mais que opiniões pessoais sobre a forma
como esse desaparecimento se realizou, opiniões que só teriam valor se fossem
sancionadas por uma lógica rigorosa, e pelo ensino geral dos espíritos; ora,
até o presente, nenhuma das que foram formuladas recebeu a sanção desse duplo
controle. Se os espíritos ainda não resolveram a questão pela unanimidade dos seus
ensinamentos, é porque certamente ainda não chegou o momento de fazê-lo, ou
porque ainda faltam conhecimentos com a ajuda dos quais se poderá resolvê-la
pessoalmente. Entretanto, se a hipótese de um roubo clandestino for afastada,
poder-se-ia encontrar, por analogia, uma explicação provável na teoria do duplo
fenômeno dos transportes e da invisibilidade. (O Livro dos Médiuns, caps. IV e
V.).” E, naturalmente faz uma renumeração, surgindo o item 68 que, nas outras
tradições citadas é o item 67.11
Dessa maneira,
são pertinentes os recentes questionamentos surgidos nas acima citadas reuniões. Companheiros do “Le
Mouvement Spirite Francophone” confirmaram-nos no
final de 2017 que a primeira impressão da 5a edição,
revisada, ocorreu em 1872, e verificou-se que muitos trechos foram eliminados
da quarta para a quinta, inclusive no capítulo sobre o corpo de Jesus.
Ao ensejo dos 150 anos de lançamento de A Gênese, seria de fundamental importância o esclarecimento sobre
algumas dúvidas que pairam sobre as versões editoriais da significativa obra de
Allan Kardec e a tradução para o português do exemplar de 1868, registrado na
Biblioteca Nacional da França.
Referências:
1) Kardec, Allan. Trad. Bezerra, Evandro Noleto. Revista Espírita. Ano XI. No. 1. 1868. Rio de Janeiro: FEB.
2) Fropo, Berthe. Trad. Lopes, Ery; Miguez, Rogério. Muita luz. 1.ed. Edição digital: www.luzespirita.org.br; acesso em novembro de 2017.
3) Kardec, Allan. Trad. Martínez, Gustavo N. La génesis. 1.ed. Buenos Aires: Confederación Espiritista Argentina. 2017.
4) Carta do presidente da Confederación Espiritista Argentina, Sr. Gustavo N. Martínez, de 14/10/2017, distribuída em reunião do Conselho Espírita Internacional, em Bogotá (Colômbia).
5) Goidanich, Simoni Privato. El legado de Allan Kardec. 1.ed. Buenos Aires: Confederación Espiritista Argentina, 2017. 440p.
6) Wantuil, Zêus. Grandes espíritas do Brasil. 1.ed. Cap. Joaquim Carlos Travassos. Rio de Janeiro: FEB. 1969.
7) Reformador, Ano I, n.1, 21 de Janeiro de 1883, p.1-4.
8) Kardec, Allan. Trad. Ribeiro, Guillon. A gênese. 1.ed. Cap. XV. Item 67. Rio de Janeiro: FEB. 1977.
9) Kardec, Allan. Trad. Bezerra, Evandro Noleto. A gênese. 1.ed. Cap. XV. Item 67. Rio de Janeiro: FEB. 2010.
10) Kardec, Allan. Trad. Gentile, Salvador. A gênese. 53.ed. Cap. XV. Item 67. Araras: IDE. 2008.
11) Kardec, Allan. Trad. Sêco, Albertina Escudeiro. A gênese. 3.ed. Cap. XV. Itens 67-68. Rio de Janeiro: Ed. CELD. 2010.
(Publicado na Revista Internacional de Espiritismo, Ano XCII, edição de fevereiro de 2018, p.21-23)
[*] Nota: trata-se
da tradicional e histórica Asociación
Espiritista Constancia, fundada em Buenos Aires no ano de 1877. Os trechos
da carta foram traduções livres feitas pelo articulista.